Intempestiva

Marilde Stropp

Entre os anos cinzas e pesados de 1968 e 1973, Marilde Stropp já tinha cursado Direito quando ingressa no mundo das artes levando em suas mãos desencontros, contratempos, restos de coisas, matérias e linhas que formavam as suas escritas de vida. Contrariando os padrões habituais, irrupções vigorosas demarcam o abandono da profissão, deixando para trás o seu diploma e a expectativa previsível de sua geração. Filha de escultor e mãe de três filhas, ela desejava revisitar – em descompasso –, os seus próprios modos de duelar com o tempo.

A obra Contravenções, de 1990, denuncia sua crítica às ciências jurídicas. A perfuração e a costura com fios de cobre de um livro do Código Penal de 1940 infligem um jogo de tensões entre as linhas de uma ciência da escrita e as linhas do desenho e da costura. Essas linhas de Contravenções não inscrevem textos. Costuram páginas, criando feridas, cicatrizes poéticas e políticas em torno de leituras sobre normatizações, sentidos e representações menos sensíveis de mundos.

Nos anos que se seguiram, na década de 1990, com lápis, carvão, pontas secas, pinceis e luz, Marilde Stropp mergulhou no universo das linhas, em superfícies planas de papeis e em tecidos com agulhas e fios na costura. Os primeiros movimentos lhe renderam aquilo que as artes reconhecem como gestos de criação, na aquarela, no desenho, na gravura, na escultura e depois na fotografia. Já com o segundo, que aparentemente ficou resguardado no mundo do seu ateliê têxtil, denotou o seu trabalho de estilista desenhando, cortando e costurando de tecidos para vestir corpos. 

Diferentemente do que poderia parecer aos olhos menos atentos, para a artista, os mundos das linhas nunca estiveram separados. Não criaram cisões, mas encontros intempestivos e, por isso mesmo, potentes criações e inscrições de histórias em que vida e obra conectam-se e reconectam-se.  Ao longo das décadas dos anos 2000, os trabalhos com as linhas seguiram reverberando o seu modo de criar e reconhecer mundos possíveis. As obras na fotografia Lado de Dentro (2003), Paragem (2010), Passante (2013), Água Pesada (2011) e, sobretudo, Tempo Quando (2017), demonstram a imprevisível aposta no encontro entre materiais como chumbo e fotografia, tecido e carvão, gravura e colagem. 

Linguagens impuras, contaminadas, que no embate entre materiais fazem sobressair a inscrição de linhas, trajetórias e nós. As linhas, como aquilo capaz de revelar o visível e o invisível, as interrogações sobre o tempo que escapa e o tempo que resta, a memória da existência e o esquecimento da morte, as nossas marcas do antigo, nossos engramas submergidos no mundo do imemorial.

Aos quase 80 anos, a artista apresenta pela primeira vez, nesta exposição, a obra Linhas, na qual emaranhados coreografam em um tecido de linho. Dançam a costura, o desenho e a escrita, amalgamados como um grande corpo alado. É uma veste, que agora se espalha não mais em um ateliê de costura, mas no centro do espaço expositivo, como uma escrita vertiginosa, a marcar os traçados labirínticos de nossas múltiplas existências e a convidar o público ao movimento das elipses do tempo. Afinal, como escreveu Jorge Luís Borges: “O tempo é a substância de que sou feito. O tempo é um rio que me arrebata, mas eu sou o rio”.

Fabiana Bruno

Ficha técnica:
Curadoria e texto
Fabiana Bruno 
Montagem 
Rogério Borges 
Reproduções fotográficas 
Vane Barini
Agradecimentos especiais

silvia ribeiro

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